terça-feira, 6 de outubro de 2015

Crítica - A Travessia

Análise Crítica - A Travessia
Review - A Travessia
Quando falei sobre Evereste mencionei que uma das coisas que me incomodou no filme era que ele parecia se esforçar pouco para nos fazer compreender o que movia aqueles personagens a tentar tal façanha e isso prejudicava nosso engajamento com eles. Este A Travessia felizmente não padece do mesmo mal e ao longo das duas horas de projeção conseguimos claramente entender as razões para o equilibrista Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) ficar fascinado em realizar seu número entre as torres do World Trade Center. Claro, é uma construção mais pautada em níveis emotivos e sensoriais, mas, sejamos sinceros, explicar em termos lógicos de modo convincente porque alguém quereria se pendurar em uma corda bamba no alto de um arranha-céu seria uma tarefa bastante ingrata.

Baseado na autobiografia de Petit (que também inspirou o documentário vencedor do Oscar Man on Wire), o filme conta seus primeiros dias como artista de rua até o momento em que fez sua histórica performance no World Trade Center. É uma tradicional história de superação, da luta de um homem para superar os obstáculos em busca de um sonho, algo que o diretor Robert Zemeckis já fez muito bem em Forrest Gump (1994), mas também tem elementos de um filme de roubo (ou heist movie) com os personagens montando a equipe para o "golpe", a invasão às torres para armar os cabos,  planejando, e então lidando com os imprevistos que aparecem.

Apesar da estrutura tradicional, o filme nos cativa graças à direção elegante de Zemeckis e ao trabalho de Gordon-Levitt. O ator consegue captar bem o enorme carisma de Petit, um sujeito tão sincero em suas intenções que conquista a simpatia de todos com quem convive e é justamente essa veracidade que Levitt transmite do deslumbramento do artista com as torres gêmeas que nos faz aderir a sua jornada, mesmo que ela nos soe como louca ou desnecessariamente perigosa. Seu sotaque francês derrapa em alguns excessos aqui e ali, mas nada que realmente prejudique a imersão. O que incomoda, no entanto, é o tratamento superficial dado a relação dele com a namorada, Annie (Charlotte Le Bon), que o filme encerra de modo abrupto, praticamente já no epílogo, sem dar muitas razões para tais acontecimentos e sem sequer criar qualquer tensão ou conflito entre eles e teria sido melhor nem mencionar o que aconteceu.

Já Zemeckis é bastante hábil em sua reconstrução digital do World Trade Center que se ergue aos céus reluzente, esplendoroso e imponente e com um nível de detalhamento impressionante. As torres são tão protagonistas do filme quanto Petit e a recriação digital feita pelo filme é precisa em despertar em nós o mesmo encantamento que faz com o protagonista do filme. Além do bom uso de efeitos digitais, o filme também traz uma rara boa utilização do 3D que nos dá a vertiginosa profundidade da altura em que o personagem se encontra, bem como a pequenez de sua figura e da corda que o sustenta. Na primeira vez que Petit sobe ao terraço do prédio e se defronta com a imensidão a cidade ao seu redor ao se equilibrar em uma viga, entendemos o sentimento misto de liberdade e adrenalina experimentado pelo personagem.

A sua performance, aliás, serve praticamente de metáfora para a arte como um todo ao nos fazer pensar até que ponto um artista deve se arriscar pelo seu ofício ou qual seria exatamente o valor ou potência deste ato para aqueles que o veem e também para quem faz. As imagens criadas por Zemeckis para a travessia tem um aspecto quase onírico, como quando sonhamos que estamos voando por entre os prédios da cidade e Petit nos lembra de como a arte nos faz transcender a nós mesmos, nos faz crer que homem pode ser mais do que aquilo que é, que através dela fazemos as pessoas crerem no extraordinário, que as elevamos para além do banal. Assim como a arte, a apresentação de Petit pode despertar reações variadas como deslumbramento ou medo, mas independente de como se reaja a ela, não há como negar a força que ela traz em si.

É curioso, inclusive, que no momento da travessia Petit perde seu uniforme, fazendo seu número com as roupas normais, praticamente como se estivesse se apresentando "de cara limpa", sem seu uniforme, sem sua persona de palco. Petit atravessa a corda bamba não como artista, mas como pessoa, ele não faz o que faz apenas pela notoriedade ou para o divertimento das pessoas, ele faz para si mesmo, pela sensação que seu próprio ofício lhe traz. Nesses momentos vemos novamente o cuidado e sutileza das composições de Zemeckis, como quando ele nos dá um breve plano-detalhe com a mancha de sangue sob a sapatilha de Petit, revelando com clareza e discrição o custo físico da façanha sobre o personagem, o que amplia a dimensão do seu feito ao mesmo tempo que evita apelar para exageros.

A Travessia, portanto, é mais do que apenas a reconstituição de uma proeza histórica, é um testamento do poder inspirador e transgressor da arte e de como isto move o artista a fazer o inimaginável.

Nota: 8/10

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